Há algo de muito familiar no economista Sérgio Besserman Vianna. O jeito de falar, a inteligência, o senso de humor afiado em tudo o que diz, o sorriso. Conversar com ele traz a sensação de que estamos diante de alguém que conhecemos, mas não nos lembramos de onde. Nos últimos meses, Sérgio está em evidência por organizar a Rio+20 — a conferência das Nações Unidas sobre desenvolvimento sustentável, que acontece de 13 a 22 deste mês na capital carioca. Ambientalista há quase 30 anos, ele especializou-se em mudanças climáticas, foi membro das missões brasileiras nas mais importantes conferências mundiais sobre o tema e hoje preside a Câmara Técnica de Desenvolvimento Sustentável do Rio de Janeiro. Mas a familiaridade não vem daí; vem da semelhança física evidente com o irmão, o humorista Bussunda, do programa Casseta & Planeta, da Rede Globo, falecido em 2006 de ataque cardíaco. “Você sabe por que todo economista é careca? De tanto passar a mão na cabeça e dizer: ‘Xiii, deu errado…’”. Foi assim, em tom de brincadeira, que ele iniciou nossa conversa, parafraseando uma das clássicas piadas do irmão, para explicar que ainda pouco se sabe do real significado do tão falado desenvolvimento sustentável.
O título de um dos mais respeitados especialistas em meio ambiente do Brasil lhe dá autoridade para escapar da demagogia e confessar, sem medo, que usa — corretamente — sacolinhas plásticas, viaja de avião, instalou ar-condicionado em todos os quartos da casa e tem um cachorro cocker spaniel, o Bolo, que ajuda a aquecer o planeta. “Educação ambiental não é uma cartilha. É ensinar a pensar, a fazer conta”, afirma ele. Aos 54 anos, casado, pai de André e Ana Elisa, Sérgio traz um olhar diferenciado ao chamar a atenção para o decisivo papel da mulher na construção de um mundo sustentável. Para ele, as mulheres sabem muito bem impor limites — e o planeta agora chegou ao seu limite.
Você considera que as mulheres estão no centro das grandes transformações que o mundo deve enfrentar nos próximos anos. O que fez com que pensasse assim?
Se eu achasse a lâmpada de Aladim e o gênio me dissesse: você tem direito a um desejo para o desenvolvimento sustentável. Só um. Eu, sinceramente, escolheria: acesso à informação e direito à liberdade sobre o próprio corpo para todas as mulheres do mundo. Parece uma frase retórica, mas repare que é uma visão oposta ao relativismo cultural. O que estou dizendo abrange todas as mulheres do mundo, sem exceção. Haverá quem diga: “Ah, mas na minha cultura a mulher tem o casamento arranjado aos 12 anos”. Ou: “Na minha cultura, as mulheres usam burca”. Azar. Essa cultura está errada, atrasada. Para o desenvolvimento sustentável da humanidade, qualquer que seja sua cultura, as mulheres têm que ter acesso à informação, ao conhecimento, à liberdade sobre o próprio corpo.
De que modo isso se conecta com a ideia de desenvolvimento sustentável?
Primeiro, pelo impacto imediato na taxa de fecundidade. É estatístico: quanto mais informação e conhecimento, menos filhos as mulheres terão e correrão menos risco de perdê-los se os tiverem. Em segundo lugar, é o empoderamento das mulheres. Mulheres mais poderosas podem ser um impulso para transformar a consciência que todos nós temos a respeito do tempo. A humanidade precisa desesperadamente pensar num tempo maior: que impacto terão as coisas que fazemos hoje nos próximos 30, 40 anos. Nós nunca fizemos isso. As mulheres são mais conscientes do tempo: o sentimento do futuro está muito presente nelas, porque pensam nos filhos, nos netos.
As mulheres que chegaram ao poder estão demonstrando essa responsabilidade?
Infelizmente, não. Ainda não se percebe diferença em relação aos homens, e assim não funciona. Não é dessas mulheres que estou falando. Estou falando daquelas que marcam presença como centro da transformação dentro de casa, nas famílias, nas redes sociais. Existe uma piada antiga em Israel que dizia que Golda Meir (ex-primeira-ministra e uma das fundadoras do Estado de Israel) era a melhor dos nossos homens. A presidenta Dilma Rousseff certamente também é a melhor dos nossos homens. Isso porque o mundo atual ainda considera os moldes masculinos mais eficientes. Sim. Essa ideia aparece até na forma idiota como medimos se estamos indo para a frente ou para trás: o PIB. Ele já é ruim para medir o crescimento econômico por razões técnicas. Mas, além disso, discrimina completamente o trabalho doméstico, por exemplo. Se uma mulher trabalhar em casa cuidando dos filhos, ela não entra em nenhum lugar na economia. Mas, se o marido lhe der algum dinheiro para fazer aquilo, aí está no PIB: o que vale é a economia.
Então, a verdade é que não sabemos a resposta do principal assunto que discutimos.
Um psicanalista francês, André Green (1927-2012), disse certa vez que a resposta é a infelicidade da pergunta. Resposta não é uma coisa importante. Seja na história, seja na vida de cada um de nós. Quando a resposta chega, o assunto já está resolvido. Pergunta é diferente: ela modifica, instiga, transforma. “O que eu quero da vida?” Essa é a pergunta da humanidade e também a pergunta do desenvolvimento sustentável. Alguns elementos são claros e nos dão pistas para chegar às respostas. Temos uma janela histórica muito estreita, de dez a 20 anos, para evitar os piores cenários de aquecimento global. É muito claro e prático: até 2030, precisamos decidir se o planeta vai só esquentar, porque isso ele vai mesmo, ou se ele vai assar. Esse é um aspecto concreto, mas há outros. Talvez, acima de tudo, a gente tenha de redefinir o que entendemos por desenvolvimento.
E o que seria esse desenvolvimento?
Olhando para a história da humanidade, vivemos mais de 199 mil anos sem fazer grandes alterações na natureza – tudo bem, uma muralha da China aqui, umas pirâmides lá, mas nada de mais. Nos últimos 300 anos, porém, tudo mudou. Lidamos com a Revolução Industrial, a ciência, tecnologia; produzimos fumaça, chaminé, carros, essas coisas todas. Isso tudo também nos salvou. Antes a gente vivia 30 anos; agora nossa expectativa bate nos 80. Alguém está a fim de harmonizar com a natureza e voltar a viver 30 anos? Não acredito. Só que não existe almoço grátis: precisamos ter a humildade de aceitar a existência de alguns limites. É infantil achar que Deus nos deu todos os bens da natureza de bandeja eternamente. Não é verdade: fomos expulsos do paraíso, tivemos que suar a camisa, e agora chegou a hora de entender que temos limites na vida aqui.
Como um adolescente que se torna adulto.
Exatamente. Aliás, de novo, as mulheres têm mais facilidade para entender isso. Estão mais presentes na educação dos filhos, sabem dar e tirar limites. A humanidade viveu os últimos 300 anos como se esses limites não existissem. Isso é muito patriarcal, muito masculino. É a filosofia da célula cancerosa, que é a do nosso mundo atual: consumir o mais que puder, ter o mais que puder, seja lá a que preço. O desenvolvimento sustentável terá de ser diferente. A economia de mercado será mantida, claro, mas teremos de pensar na essência das coisas. Até na própria linguagem: quando a gente fala em desenvolvimento, não está falando em crescimento máximo a qualquer custo. Desenvolvimento significa desfazer o que está envolvido. É o que as mães querem para seus filhos: que eles se desenvolvam, libertem seu potencial criativo. Se a humanidade pensasse da mesma maneira que as mães, no que elas desejam aos seus filhos, estaríamos mais próximos dessa resposta sobre o desenvolvimento sustentável.
Sua mãe pensava assim?
Sem dúvida. Meus pais foram comunistas, combateram a ditadura militar e, antes, a de Getúlio. Minha mãe era muito atuante e nunca nos deu opção: eu e meus irmãos fomos obrigados a abraçar causas sociais desde cedo. Não tivemos vocação, foi falta de escolha mesmo (risos). Meu interesse especial pelas mudanças climáticas é porque esse é o assunto que mais vai mudar a economia e uma civilização inteira. E os mais atingidos serão os mais pobres.
O assunto é muito mais sério do que apenas separar o vidro da latinha em casa, não é?
Com certeza. Sempre me perguntam sobre hábitos de consumo. É bom separar o plástico do vidro? Demorar menos no banho? Claro que é bom. Fica ruim se as pessoas acharem que se trata de uma cartilha. O mais importante é fazer política com P maiúsculo, agregar ideias, discutir em família, no bairro, nas redes sociais, não sobre o meio ambiente, e sim como se conectar com a história. O que está em jogo é a história humana. Como participar disso? Estamos no olho do furacão. A educação ambiental não é ensinar hábitos. É ensinar a pensar. Não adianta nada não usar sacolinha plástica, mas adorar uma picanha. Para o planeta, 1 quilo de carne de boi equivale a três horas e meia dirigindo um carro a gasolina com ar-condicionado ligado. Sem demagogia. É lógico que os bons hábitos são necessários e minha família os segue. Mas instalei ar-condicionado em casa, viajo de avião e tenho carro. Não como muita carne vermelha, mas tenho um cachorro, o Bolo, e ele esquenta o planeta. Tem ração, pet shop, xampu. Esses bens deveriam ser caros, muito caros. O preço das coisas tem que incorporar o impacto. As pessoas não vão deixar de comer carne vermelha, de ter cachorros ou de viajar de avião. Mas deverão pagar por isso.
Você sofre com a patrulha ambiental?
Uma cena comum é quando saio do supermercado com 28 sacolinhas plásticas e então vem uma senhora: “Você, justo você! Não pode! Essa sacola vai demorar 100 anos para se decompor!”. Eu já vi baleia morta com sacolas plásticas na barriga. Mas essas minhas sacolas aqui eu vou usar para pegar o cocô do meu cachorro na rua, depois vou jogar no cesto e sei que a Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro) vai levar lá para uma central. Tudo para dizer o seguinte: não tem uma cartilha. A história está em aberto de uma maneira que a humanidade jamais assistiu antes.
Esse é o grande desafio da Rio+20? Ou a conferência pode morrer na praia? A Rio 92 foi considerada um fracasso…
Já estou declarando vitória. Batalhas a gente não ganha quando se matam pessoas, e sim quando declaramos vitória antes. Só saberemos nos últimos dias de que maneira os chefes de Estado lidarão com os compromissos. Mas isso não é o mais importante; mais relevante, acredito, é o momento histórico. Trata-se de uma multidão de eventos acontecendo, o mundo inteiro conectado, as discussões se aprofundando. Precisamos de grandes transformações, e é lógico que elas não vão acontecer simplesmente porque temos a Rio+20. A conferência poderá representar um momento histórico mais ou menos importante. Isso vai depender da coragem que mostrará diante dos problemas.
Fonte: Revista Cláudia – Por Mariana Sgarioni