Dizem que poucas pessoas no mundo compreendem a arte de viver como os franceses. É bem verdade que, a partir do século 18, algumas invenções específicas, tanto na arquitetura quanto no mobiliário, seguiam o estilo ditado pela França. “De prédios a móveis e encanamentos”, como lembra Joan DeJean em seu livro “O século do conforto”, os parisienses descobriram o casual e criaram o modelo de lar moderno.
Não eram “apenas” poltronas e janelas que surgiam ali: “os franceses haviam ensinado seus colegas europeus tanto a ‘iluminar’ suas mentes quanto a tornar seus corpos mais confortáveis”, descreve a autora. Esse trecho da história é um lembrete de que, cada uma a seu tempo, muitas culturas direcionam constantemente nosso modo de vida e nossos impulsos de consumo.
A forte valorização do design escandinavo nos últimos anos é uma pista de que algumas das nações mais influentes em determinadas épocas são as que oferecem modelos de desenvolvimento social valoráveis, seja porque representam um contraponto ao contexto atual ou porque preenchem por afinidade as lacunas da vida doméstica mais corriqueira. “Esse interesse tem a ver com encontrar beleza no simples. Um não luxo que emociona de um jeito essencial, aquele poder de encantar por pouco”, explica o arquiteto Gabriel Valdivieso.
O ranking e o hygge
Se o chamado “século do conforto”, sobre o qual escreveu Joan DeJean, era uma emergência para a sociedade que buscava uma dose a mais de informalidade, o mundo contemporâneo, um tanto acelerado e hiperconectado, demanda um pouco mais de espaço, de tempo e de presença. “Nada causa tanto escândalo, em nosso tempo, quanto o tempo vazio”, escreveu a psicanalista Maria Rita Kehl em “O tempo e o cão.”
Estamos cheios de coisas em nossas casas e cada vez com espaço físico mais reduzido nas grandes cidades; a mesma tecnologia que traz sensação de segurança e com a qual já estamos tão familiarizados também nos invade a todo instante. O planeta apresenta um futuro de provável escassez de recursos e, se olharmos para questões políticas e sociais particulares, o Brasil vive um momento de transformações profundas, o que só faz aumentar a sensação de insegurança.
Assim, entra em cena o estilo depurado escandinavo, roubando espaço enquanto proposta de uma vida simplificada. Com ele o termo hygge (que se pronuncia “huga”) se popularizou no universo do design de interiores recentemente, e é antes de qualquer coisa uma ideia de recuperar o bem-estar em casa; o lar como lugar de aconchego. “A sensação de efemeridade é generalizada e constante na vida contemporânea. Esse interesse representa a possibilidade de apaziguar a angústia perante a transitoriedade da vida. Nos lembra que a vida está sendo desfrutada”, explica a semioticista Janiene Santos.
Um ranking da Organização das Nações Unidas (ONU) mostrou que a Noruega e a Dinamarca ocupam o primeiro e o segundo lugar, respectivamente, entre os países mais felizes do mundo. O Brasil, que perdeu cinco posições em um ano, está atualmente em 22° lugar. São profundas as diferenças econômicas, políticas e sociais que marcam essas culturas. É inevitável, então, fazer a pergunta: afinal, é possível traduzir um conceito como o hygge para o nosso contexto?
Helen Russell, autora do livro “The Year of Living Danishly: Uncovering the Secrets of the World’s Happiest Country” (“O ano em que vivemos como dinamarqueses: descobrindo os segredos do país mais feliz do mundo”, em tradução livre), foi uma das primeiras a estudar o termo. Quando precisou se mudar para a Dinamarca, descobriu que a vocação para “aproveitar a presença de coisas suaves”, como define o hygge, explica muito desse estado de espírito. Helen afirma, categórica: “Hygge não é uma mercadoria e não deve custar-lhe nada. As velas simples são melhores do que as perfumadas, um cobertor de malha velho é melhor do que o mais recente”, conta.
Menos modelos
Três séculos depois da tal “invenção do conforto”, o hygge dinamarquês fala menos de uma demanda por um tipo de móvel específico e mais de uma atitude perante a vida. O movimento propõe uma dose de autoindulgência que sempre vem a calhar. Mas, mais importante que isso é compreender que, ao invés de um modelo estético, a sabedoria dinamarquesa passa pelo resgate de memórias e pelo conhecimento da própria história; é um exercício de liberdade e de autoestima na decoração que permite que mesmo em meio às simultâneas referências, vindas de todas as partes, a nossa casa siga sendo um lugar de afeto. “O ponto de contato com a cultura dinamarquesa é mais ideológico que estético. Para criar conforto valem mais as referências próprias”, arremata Gabriel Valdivieso.
Três ambientes inspiradores
A CASA MAIS INCLUSIVA | Traduzir o conforto para a essência brasileira envolve menos introspecção e mais prazer em volta da mesa: passar um café em um coador de pano, cozinhar para os amigos… “Hygge está relacionado à união, a envolver pessoas que você gosta comendo, bebendo e sendo feliz”, diz Helen Russel.
ABRA AS JANELAS | Nossas condições climáticas são bem mais favoráveis do que a dos países escandinavos. Aproveitar a luz natural abundante do nosso país tem a ver com qualidade de vida. E, quando o assunto é bem-estar, o conforto sensorial é essencial: o cheiro suave do eucalipto e uma música agradável ajudam a relaxar.
PURO ACONCHEGO | Texturas naturais, uma almofada de tricô feita à mão, o livro preferido na mesa de cabeceira. Cada um faz do quarto uma válvula de escape à sua maneira, mas poucos ambientes são tão perfeitos para traduzir o conforto quanto ele. A espessura do travesseiro que você escolheu e o cheiro da roupa de cama lavada são prazeres particulares que intensificam a vontade de desfrutar a casa.
Fonte: Casa e Jardim
_________
Leia também:
- A blogueira Jessica Van Den Berg e o estilo escandivano. Clique aqui e saiba mais.